Cultivo de cana movimenta R$ 100 bilhões e cria 28º Estado
No mapa, são 27 os estados do Brasil, considerando o Distrito Federal. Mas uma região nas fronteiras dos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Goiás ganhou o status de “28º estado informal”. Surgido a partir do avanço da cultura de cana-de-açúcar nas últimas décadas, esse novo “estado” tem 250 municípios em seu território, onde vivem cinco milhões de trabalhadores. Tem dinâmica, leis e orçamento próprios, além de influência econômica e política, que garantem ao Brasil o posto de maior produtor de cana-de-açúcar do mundo.
Esta é a conclusão de um estudo do pesquisador Ângelo Cavalcante, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Segundo ele, trata-se de um “estado autônomo”, que, com a produção de energia elétrica, biomassa, etanol e açúcar, movimenta mais de R$ 100 bilhões ao ano.
— Essa região na fronteira de cinco estados brasileiros funciona como uma unidade federativa, a partir de uma dinâmica própria determinada pela produção da cana. O Aquífero Guarani, formação geológica de armazenamento subterrâneo de água, assegura o sucesso da produção de cana-de-açúcar nessa região, que responde por mais de 80% da produção canavieira do país — diz Cavalcante, professor da Universidade Estadual de Goiás, em Itumbiara.
A expansão desse território, segundo o especialista, também trouxe problemas. Como os ambientais, com a cana avançando sobre áreas de cerrado em Goiás e de Mata Atlântica em São Paulo. Cavalcante observa que não houve discussão ambiental nem resguardo de áreas rurais, onde era praticada uma agricultura familiar. Além disso, pequenos agricultores que tiveram suas terras arrendadas ou compradas por grandes grupos canavieiros migraram para as cidades.
— Lavradores, extrativistas, indígenas e quilombolas perderam seu habitat e passaram a viver em áreas desassistidas pelo poder público, alguns em submoradias. É gente que não está acostumada a viver em cidades — diz Cavalcante.
Em Ibaté, a 247 quilômetros de São Paulo, o agricultor Sebastião Gomes de Souza, de 54 anos, mudou-se com a mulher para a cidade, há três anos, depois que a fazenda onde trabalhava pulverizando e adubando uma plantação de laranjas foi arrendada para o cultivo de cana. Souza morava em uma espécie de colônia e não pagava aluguel, nem tinha conta de luz e água, o que lhe dava folga no orçamento. Hoje trabalha com engorda de gado em outra propriedade e diz que não se acostuma com a cidade.
— A vida na cidade é mais cara. Vou aguentar um tempo e voltar para o campo — diz Souza, que mora a dez quilômetros do trabalho.
A cultura da cana é a vocação econômica de Ibaté desde a década de 1950. Atualmente, a maior parte das propriedades canavieiras está arrendada para grandes grupos. Marcelo Valério, de 54 anos, foi um dos últimos da região a arrendar, na safra passada, sua fazenda de cana de médio porte para uma usina controlada pela Raízen, grupo sucroalcooleiro formado por Cosan e Shell. Com a mecanização da colheita, o custo fixo de manter máquinas e empregados subiu, diz.
— Além disso, quando a colheita não era mecanizada, era mais fácil manter a longevidade do canavial, com até sete cortes. Hoje, com a mecanização, são de três a quatro cortes. Depois a produção acaba e é preciso replantar — conta Valério, cuja família planta cana desde os anos 1950.
O pequeno produtor Antonio Nelo Venture, de 63 anos, é um dos poucos em Ibaté que ainda mantém produção própria de cana para vender às usinas. Mas planeja comprar uma propriedade maior para arrendá-la, já que as usinas preferem fazendas maiores. E também porque seus filhos, um administrador público e uma nutricionista, não devem tocar o negócio.
— O pequeno produtor vai acabando. Não consegue sobreviver porque precisa investir em tecnologia. Um trator com GPS, por exemplo, custa R$ 200 mil. E o preço pago hoje pela cana é mais baixo, não é como o de antigamente — diz Venture.
Em São Paulo, um levantamento feito no ano passado pela Embrapa Monitoramento por Satélite comprova o avanço da cultura no estado. Por meio de imagens de satélite de 125 municípios, o trabalho mostrou que as áreas de cana, que há 30 anos ocupavam um milhão de hectares, hoje ocupam 2,3 milhões. Ao longo desse período, o lucro da atividade canavieira foi superior ao de outras atividades, o que estimulou esse avanço. Uma das culturas que mais cedeu terreno à cana foi a citricultura, segundo a Embrapa.
— Na cidade paulista de Bebedouro, por exemplo, que era a capital da laranja, essa cultura começou a declinar, a partir de 2008, e deu lugar à cana. Os custos altos de produzir os cítricos, o preço baixo pago pela indústria, os estoques altos e o greening (doença que ataca os cítricos) acabaram influenciando na substituição pela cana — diz Carlos Cesar Ronquim, pesquisador da Embrapa e coordenador da pesquisa.
A União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), que representa mais de 50% da produção nacional, informou em nota que, desde 2009, a expansão do cultivo é regulada pelo Zoneamento Agroecológico da Cana, criado pelo governo federal, orientando o crescimento do setor. A cultura da cana, diz a Unica, não pode avançar sobre vegetação nativa, como cerrado. Também é proibido o plantio em terras indígenas.
Segundo a entidade, a maior parte da área utilizada no cultivo de cana, em anos recentes, era de pastagens degradadas. No cerrado, a expansão para a produção de etanol, a partir de 2003, aconteceu exatamente sobre pastagens e entre uma ou duas safras de soja, diz a entidade, que garante que seus associados obedecem à legislação. Além disso, assegura a Unica, a produção de cana não depende nem se beneficia do Aquífero Guarani e, em sua maior parte, usa águas superficiais, não subterrâneas. A associação argumenta ainda que o avanço da cana melhorou, em termos econômicos, a vida da população das cidades que passaram por esse processo.
“Entre 2000 e 2008, a expansão da cana em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal aumentou em pelo menos R$ 1 mil o PIB per capita médio de 2,3 mil cidades”, afirmou a Unica em nota, citando ainda que, em 2016, foram gerados 794.911 empregos formais no setor sucroenergético brasileiro.
A Unica argumenta ainda que o avanço da cana sobre as plantações de laranja em São Paulo, apontado pelo levantamento da Embrapa, foi decorrente da queda da demanda mundial pelos cítricos.
— E o preço pago pela cana, atualmente, é calculado pelo teor de sacarose e regulado pelo mercado. Isso levou a uma revolução do setor, após o fim do controle de preços do governo, já que os produtores tiveram de investir em variedades mais produtivas. Antes, pagava-se pelo peso da cana — afirma Antonio de Pádua, diretor técnico da Unica.
Mas estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontam queda de 3,3% na safra 2017/2018 de cana no país. Serão 635,59 milhões de toneladas, contra 657,18 milhões na safra anterior. Esse recuo, segundo a Conab, seria resultante de uma retração na área cultivada.
Fonte: Revista PEGN via Cana Online